David Canabarro 1
06 de agosto de 2012
O Viés da Liberdade - ou O que é isso, Canabarro? (Parte I)
Durante a guerra civil de 1835-1845, os rebeldes farroupilhas enfrentaram uma grande escassez de recursos. Estiveram impossibilitados de comercializar com a região de Pelotas e Rio Grande, que permaneceu fiel aos legalistas – apesar da ironia desta última cidade guardar os restos mortais de Bento Gonçalves. Não obstante as situações esporádicas em que os inimigos negociaram, a venda dos artigos da campanha rio-grandense esteve voltada à fronteira platina, uma vez que também a tentativa de acesso ao porto de Laguna foi impossibilitada perante a falta de apoio da população catarinense. O gado era exportado em pé para o Uruguai e lá charqueado, e os lucros eram voltados a satisfazer as despesas da guerra. Este gado era retirado, principalmente, das fazendas dos cidadãos que permaneceram do lado legalista. Estas estâncias deveriam ser arrendadas a farroupilhas pelo seu governo, publicamente, e estiveram submetidas a séries de abusos por parte dos rebeldes. Cavalos, bovinos e escravos eram retirados das propriedades; estes últimos saíam para as fileiras do Exército. De um desses arrendamentos surgiu um curioso caso envolvendo um oficial farrapo do decênio.
Em 1841, Leocádio Silveira Gomes escrevia a Domingos José de Almeida, Ministro da República Rio-grandense, relatando um descomedimento ocasionado em razão de outro abuso: havia seu irmão arrendado a fazenda de Manuel José Machado, tendo cedido um escravo chamado Duarte, que pertencia à fazenda – e também estava arrendado - para acompanhar Leocádio em uma de suas viagens. Logo, Duarte foi seduzido pelas promessas farroupilhas de liberdade para os escravos que se apresentassem para lutar em suas fileiras, e acabou fugindo, indo dar no acampamento do General David Canabarro (logo o futuro carrasco de Porongos! Que escravo azarado!), para sentar praça.
Ao procurar o General Canabarro, Leocádio pediu a ele que passasse um documento para que seu irmão não saísse no prejuízo com o negro, sendo pago por uma das coletorias do Estado farroupilha. O General, porém, negou-se a passar um documento comprobatório, dizendo para Leocádio que Duarte estava garantindo que não havia entrado no acordo do arrendamento, podendo servir sem necessidade de pagamento aos arrendatários (seria o relato real ou resultado do medo de Duarte de ser devolvido e voltar a ser mero escravo desesperançado?).
Há muito não é mais novidade que os farroupilhas, em nenhum momento, objetivaram uma reforma social em seu Estado. Os negros que lutaram em suas fileiras ou eram retirados diretamente das estâncias legalistas; ou eram de farroupilhas que vendiam estes escravos para o Estado; ou ainda, negociados com os arrendatários, quando os escravos entravam no contrato como mais um bem.
Neste caso, Canabarro pedia que Leocádio justificasse sua pretensão de pagamento. O irmão do arrendatário escreveu, então, para o Inspetor do Tesouro da República Rio-Grandense, pedindo para que lhe fosse enviado o termo do arrendamento, o qual declararia o nome de todos os escravos que entraram no negócio como bens. Assim, o irmão de Leocádio seria ressarcido do valor de um escravo que não era seu e que pertencia a uma estância que não era sua, Canabarro teria mais um bravo combatente em suas hostes, e Duarte teria sua liberdade de soldado-escravo. Ou seja, todos ficariam surpreendentemente felizes.
A atenção de Leocádio mudava, então, de objeto. Por alguma razão, Canabarro ordenou que ele se preparasse para segui-lo até o acampamento das tropas. Contrariado, seguiu o chefe farrapo, percebendo que o General estava pretendendo arregimentá-lo. Nesse momento, enfim, surgia a preocupação com a sua liberdade, mesmo que Leocádio apenas fosse se tornar temporariamente um cidadão-soldado de Guarda Nacional, mesmo não sendo um escravo negro fugido, como Duarte...
(continua...)
Ânderson Marcelo Schmitt
Mestrando em História na UPF
Fonte: Acervo AHR
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