Acervos privados do AHR
“E aqui estou. 28 anos de luta, muitas vezes tocando ou cantando para alegrar, sem demonstrar que por dentro de mim havia uma tristeza ou uma dor causada pelo Sr. destino”. Esta melancólica declaração foi escrita em 28 de março de 1969, no “quarto nº 17” do Hospital São Vicente de Paulo, por um homem que aguardava para ser submetido a uma cirurgia de úlcera. Seu nome: Alfredo Custódio, também conhecido como Alfredinho, importante músico passo-fundense. Nascido em 1919, participou ativamente da vida cultural da cidade. Na sua carteira da Ordem dos Músicos do Brasil consta o título de acordeonista, mas uma observação atesta que “é também pianista, violonista e cantor”. Entre uma excursão e outra, para várias cidades do país, especialmente da região sul, ele animava as noites do Dancing Elite e do Marabá, ambos localizados na 15 de Novembro, centro da movimentada vida boêmia da Passo Fundo dos anos 1930-50. Faleceu em 1974. Se não legou bens materiais consideráveis, Alfredinho deixou à posteridade um conjunto de papéis valiosos. Seu acervo compõe-se de documentos, recortes de jornais, fotos, partituras, letras de músicas e fragmentos de escritos esparsos, memórias traçadas em linguagem simples, mas marcadas por um tom poético, como percebemos.
Este material faz parte do conjunto de acervos privados do Arquivo Histórico Regional, no qual também encontraremos documentos de outras pessoas. O pesquisador pode consultar, por exemplo, os pitorescos rascunhos da Enciclopédia Sul-Rio-Grandense Ilustrada, obra de Antonio Carlos Machado, publicada pela Editora Berthier, em Passo Fundo, nos anos de 1988-89. Ou, então, debruçar-se sobre as memórias políticas e os saborosos “causos”, sobretudo referentes à atividade médica, de Nicolau Araújo Vergueiro. Além dos documentos, há que se destacar o acervo bibliográfico que acompanha os fundos referentes a estes nomes e a outros, como Cyro Schell, Clodoaldo Brenner, Maria Fialho Crusius e Mário Menegaz.
Obviamente, não se trata, aqui, de destacar personalidades que, pela sua atuação, seriam passíveis de merecer uma atenção especial. A história já não comporta este tipo de aproximação. Ao contrário, a variedade permite problematizar e discutir aspectos importantes da vida social e cultural, como a questão da representatividade ou o confronto entre o (às vezes pretensamente) erudito e o popular. Além disso, é preciso não esquecer os aspectos de seleção de dados biográficos realizados pelos próprios sujeitos, o que exige um olhar especialmente crítico. A despeito dessas advertências, por outro lado, é forçoso reconhecer o potencial historiográfico desse material, a quem se aplica a expressão consagrada por Angela de Castro Gomes: são escritas de si, escritas da história.* Pois trazem uma variedade de elementos valiosos para um acercamento às questões relativas à história política e social regional, assim como possibilitam um olhar mais apurado sobre o processo de construção da memória, individual e coletiva.
* Para uma apreciação sintética do que representam as “escritas de si” para a historiografia atual, bem como de uma mostra de trabalhos nessa linha (utilizando memórias, correspondências, autobiografias), pode-se ver: GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
Álvaro Antonio Klafke
Prof. do Curso de História e do PPG em História da UPF