O coração peregrino do mártir do Caaró
Nos dias 15, 16 e 18 de março de 1940, o jornal O Nacional noticiou algo incomum tanto naquela época quanto nos dias de hoje: uma relíquia que moveu grande número de fiéis desde a Gare Ferroviária até a Igreja Matriz da cidade e foi motivo de adoração e devoção. Trata-se do coração do então proto-mártir Pe. Roque Gonzalez (1576-1628), para o qual a população prestou homenagens durante esses dias. Por mais que para alguns seja difícil crer que fosse o verdadeiro coração do mártir católico, esse órgão considerado relíquia teria sido uma das poucas partes de seu corpo que restou após sua morte, assim sendo conservado e tido símbolo de milagre para muitos devotos.
Declarado santo em 1988 pelo Papa João Paulo II, Roque Gonzalez nasceu no Paraguai, no ano de 1576. Foi um religioso que se destacou na história do Brasil ao difundir a religião entre os povos indígenas das terras do oeste do Rio Grande do Sul, juntamente com os padres Afonso Rodrigues (1598-1628) e Juan Del Castillo (1595-1628). Roque Gonzalez foi um dos primeiros evangelizadores nas terras pertencentes ao atual Rio Grande do Sul. Foi um religioso vinculado à Ordem dos Jesuítas e exerceu seu trabalho missionário juntos aos povos Guaranis.
Filho de pais espanhóis, interagiu desde a infância no Paraguai com pessoas de origens e falas nativas, principalmente Guarani, o que provavelmente tenha colaborado para converter os indígenas através da familiaridade linguística. Aos 22 anos, Roque Gonzalez foi ordenado sacerdote diocesano no Paraguai, e já quando Padre se integrou na Companhia de Jesus (1609). O religioso fundou a primeira unidade colonizadora ao leste do rio Uruguai, para onde viajou em missão em 1619. Mais tarde fundou numerosas aglomerações como a de São Nicolau, Assunção e Todos os Santos do Caaró, contudo, um cacique, chamado Nheçu, não concordava com a presença do Pe. Roque e sua evangelização dos povos indígenas. Logo, o líder indígena reagiu por entender que o padre era seu concorrente na liderança da tribo.
Segundo a narrativa, depois de rezar a missa, o Pe. Gonzalez fazia suspender o sino para o campanário da capela. Nesse momenot o religioso foi surpreendido a golpes na cabeça com um machado de pedra por um índio de confiança do cacique Nheçu. Depois de espancado até a morte, foi ateado fogo nos corpos dos padres Roque e Afonso Rodrigues, e um de indígena cristão que tentara defendê-los. A igreja foi reduzida a cinzas pelos indígenas vinculados ao cacique. Os sobreviventes recolheram os restos mortais dos cristãos, porém, apesar das chamas, o pretenso coração de Pe. Roque não foi destruído, o que foi considerado um milagre.
Em 1940, quando trazido para Passo Fundo, o coração do católico foi exposto na Igreja Matriz na noite de 16 de março, sendo motivo de veneração por todos os que passavam no local. Com a situação já anunciada anteriormente, O Nacional no dia 15 ressaltava: “sem dúvida alguma, se tem podido observar em todos os recantos, a ansiedade que predomina em todo o mundo católico”. Ainda segundo O Nacional, a vinda da relíquia para Passo Fundo foi possível “graças a interferência de S. Excia. Revma. D. Antonio Reis”, então bispo da Diocese de Santa Maria. Quando o coração chegou a cidade foi iniciada uma procissão integrada por cerca de duas mil pessoas que acompanharam-no da Gare Ferroviária até a Igreja Matriz. Da porta da Igreja, o Pe. Henrique Jolk narrou como foi a vida do mártir Roque. Em seguida fez uso da palavra Dr. Frederico Morsh que orou junto aos católicos presentes.
O coração também foi levado para o Hospital São Vicente de Paulo para que pudesse ser acolhido pelos adoecidos internados nesse estabelecimento. Mais tarde, a relíquia foi levada para a cidade de Carazinho para receber outras reverências, e de lá seguindo para outros municípios do Estado e finalmente a Serra Azul, próxima a Caaró, local do martírio. Tal devoção mobilizou cristãos devotos pelo Rio Grande do Sul e evidenciou a força das crenças entre a população, situação ainda vislumbrada na cidade, sobretudo quando das romarias realizadas anualmente em Passo Fundo.
Sheron Freitas Machado