Os usos da imprensa como legitimadora da desigualdade social durante a Ditadura Militar
Janaína Júlia Langaro
Mestranda em História – UPF
A revista O Cruzeiro, faz parte do acervo do Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, e circulou no Brasil entre os anos de 1928 e 1975. Fundada por Assis Chateaubriand, magnata da imprensa da época, apoiou o Golpe Militar de 1964 que derrubou João Goulart chegando a publicar uma edição extra intitulada Edição Histórica da Revolução. Nessa edição comemorativa, a revista chama o golpe de “revolução” que garantiria a “democracia” no país.
Quando nos dedicamos a ler a seção de cultura da revista encontramos, no ano de 1967, uma matéria com a artista Elza Soares. O assunto da sua entrevista é a sua volta ao morro onde cresceu. Na primeira página da reportagem a cantora tem sua vida resumida por Rosinha Sarda: filha de uma lavadeira e de um trabalhador de pedreira que depois da fama só subia o morro para rever amigos e lembrar-se de seu passado. Elza tinha se tornado a Deusa do Chocolate.
É a jornalista Rosinha que narra a história da cantora que casou aos onze e foi mãe aos 12 anos. Seu primeiro trabalho foi como lavadeira, seguindo os passos da mãe. Quando entregava as roupas nas “casas das madames”, ficava impressionada com o luxo delas e sonhava em ter uma casa igual. No texto Elza conta que começou a cantar para alimentar os filhos que choravam por um pedaço de pão e que a proposta para um teste veio de Silvinha Telles e Aluísio de Oliveira. Aprovada no teste, começou a ganhar mais dinheiro do que como cantora de boates e bares, atividade que exerceu antes da fama.
Através do trabalho a cantora pode dar aos filhos uma casa e acesso à escola, benefícios que lhe foram negados na infância devido à pobreza da família. É justamente este ponto do texto que nos trouxe a essa análise. No ano da reportagem, 1967, a ditadura militar já tinha suspendido as eleições presidenciais ao prorrogar o governo de Castelo Branco e o discurso moralizante da sociedade já circulava pelo país. Deste modo, somente um discurso direcionado aos “inimigos da nação” não era capaz de gerar o sentimento de nacionalidade ou patriotismo. Assim, a reportagem com Elza Soares pode ser vista como um exemplo a ser seguido pelos que passavam fome e eram excluídos socialmente. A narração feita em primeira pessoa prega que com esforço, todos poderiam alcançar uma vida confortável como Elza. Desta forma, a reportagem tendenciosa da revista aponta a manipulação presente na imprensa tradicional durante a Ditadura Militar. Dado o alcance do periódico, é possível afirmar que parte dos seus leitores associou a carreira ascendente de Elza ao seu esforço individual e com isso, puderam a associar a pobreza à falta de vontade ou trabalho das pessoas, pensamento que ainda repercute entre a população brasileira.
Vemos este discurso meritocrático da revista O Cruzeiro como uma forma de isentar o Estado brasileiro governado pelos militares golpistas de suas obrigações constitucionais frente à população do país. Se Elza Soares, uma mulher “de cor” e pobre pode alcançar a fama e uma vida confortável todas as pessoas parecidas com ela também podiam. A realidade, entretanto, é outra. Não é por nada que a cantora lançou neste ano de 2019 seu CD Planeta Fome.