Pesquisador da Instituição desenvolveu um dos seis trabalhos que fazem parte de projeto internacional coordenado pelo Instituto de Pesquisa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social
O acesso e a quantidade de matrículas em cursos de ensino superior estão aumentando em todo o mundo. Paralelamente, tem ampliado as expectativas das pessoas em relação a melhores oportunidades no mercado de trabalho, de condição social e de crescimento de renda decorrentes da obtenção de um diploma universitário. No entanto, as concretizações desses objetivos dependem do cumprimento de certas condições econômicas e sociais, sendo que algumas estão inclusive piorando em tempos de muito desemprego. Assim, surge um questionamento: O ensino superior está realmente contribuindo para reduzir as desigualdades e sendo chave para gerar mobilidade social nos países em desenvolvimento?
Com o intuito de responder a essa pergunta, o Instituto de Pesquisa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social (UNRISD - United Nations Research Institute for Social Development), sediado em Genebra, na Suíça, lançou edital internacional para apresentação de estudos e pesquisas que ajudam a esclarecer qual o real papel que as universidades e faculdades estão cumprindo na redução das desigualdades sociais nos países de baixa e média renda. O projeto faz parte da investigação do UNRISD para a indicação de políticas dentro do projeto Superando Desigualdades em um Mundo Fraturado: Entre o Poder de Elite e a Mobilização Social, lançada em 2018.
Um dos seis trabalhos selecionados foi produzido pelo professor da Universidade de Passo Fundo (UPF), Dr. Julio Bertolin, em parceria com o pesquisador Tristan McCowan da Universidade de Londres. O título da publicação é ‘Inequalities in Higher Education Access and Completion in Brazil’ (Iniquidades no Acesso e Conclusão na Educação Superior no Brasil). No estudo, os pesquisadores analisam as tendências e as limitações na igualdade de oportunidades para os diferentes grupos sociais em termos de acesso e conclusão do ensino superior no Brasil no período de 2000 a 2018, avaliando a variação entre as universidades federais e as faculdades com fins lucrativos, as modalidades de ensino presencial e a distância e os diferentes cursos de graduação, com base em três conjuntos de dados nacionais (Censo do Ensino Superior, Enade e Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).
Em entrevista, o professor fala sobre o panorama de acesso ao ensino superior no Brasil, sobre a relação entre universidades e desigualdade social e sobre a importância de estudos relacionados a esse tema. Confira:
Professor, a sua pesquisa analisa tendências em acesso e conclusão do ensino superior no Brasil. Se pudesse apresentar um panorama atual do ensino em nosso país, qual seria?
Julio Bertolin- Assim, como em quase todo o mundo, a educação superior brasileira está passando por um processo de profunda transformação. Dentre outras, podem ser destacadas grandes mudanças em termos do nível da internacionalização com aumento da mobilidade de professores e estudantes com outros países; da mercantilização e/ou privatização com a criação de novas faculdades e instituições com fins de lucro e crescimento da modalidade a distância; da maior aproximação das universidades com os setores produtivos por meio de parques tecnológicos e pesquisas comerciais; da criação de rankings internacionais e nacionais que ampliam a competição entre instituições e, talvez a principal, da massificação do acesso e expansão das matrículas, cursos e instituições. Dependendo do ponto de vista e da concepção de educação de cada pessoa, alguns aspectos desse processo de transformação podem ser considerados positivos ou negativos.
Qual o papel das Instituições de Ensino Superior (IES) frente à desigualdade social?
JB- Cada vez mais a educação superior e suas universidades e faculdades desempenham um papel fundamental tanto para o crescimento econômico como para o desenvolvimento social. Publicações recentes do Banco Mundial demonstram que na maioria dos países os retornos obtidos com um diploma de graduação estão superando os alcançados com níveis educacionais inferiores. Desta forma, a conclusão de um curso superior é um dos caminhos mais promissores para sair da pobreza. A evidência empírica demonstra isso. Por exemplo, de acordo com o IBGE, em 2019, um trabalhador brasileiro que ainda estava estudando tinha um rendimento mensal médio de R$ 918,00 por mês, enquanto um que já tinham diploma de graduação recebia, em média, R$ 5.108,00 por mês. Além disso, quem é graduado sofre menos com o desemprego. No ano de 2017, a taxa de desemprego para quem tinha apenas ensino fundamental foi de 14,7% para brancos e 19,7% para negros. Para aqueles com diploma de ensino superior, a taxa foi de apenas 6,3% para brancos e 7,4% para negros. Assim, como o nosso país é um dos mais injustos socialmente, a capacidade das universidades e faculdades de propiciar acesso, conclusão e formação de qualidade torna-se fundamental para contribuir com a mobilidade social e a redução das desigualdades.
É possível identificar se existe alteração dessa contribuição de acordo com o setor federal e com fins lucrativos (presencial e a distância)?
JB- O nível de contribuição da educação superior para reduzir as desigualdades varia em diversos aspectos, tais como categoria administrativa das instituições (ex: universidades federais x privadas mercantis), modalidade de ensino (ex: presencial x ensino a distância) e carreira/profissão do curso de graduação (ex: bacharelados x curso tecnológico). Uma determinada configuração, por exemplo, um curso de elite numa universidade federal, pode propiciar maiores ganhos em termos financeiros e de reconhecimento social para seus egressos, mas ao mesmo tempo possibilitar acesso reduzido a estudantes de menor nível socioeconômico e cultural. Por outro lado, um curso da modalidade a distância numa faculdade privada com fins de lucro pode ser facilmente acessado por jovens de famílias de baixa renda, mas poderá proporcionar pouca aprendizagem e empregabilidade, bem como gerar ganhos futuros limitados. Em geral, a equidade na educação superior envolve questões amplas relacionadas as possibilidades de acesso, a efetiva conclusão do curso, a qualidade da formação desenvolvida e o próprio status acadêmico da instituição frequentada. Pouco adianta, por exemplo, garantir 100% de acesso se o aprendizado for precário.
Qual o impacto da desigualdade para o avanço da sociedade no Brasil?
JB- Desigualdade gera pouca coesão social. E sociedades pouco coesas encontram muitas dificuldades para alcançar consensos em favor do bem comum. É muito negativo que pessoas com nível de renda significativamente diferentes vivam realidades completamente distintas em termos de oportunidades e direitos dentro de um mesmo país. Ao terem acessos a escolas, hospitais, meios de transportes e espaços de lazer diferentes, os grupos sociais não se veem como iguais e não aceitam algumas perdas imediatas necessárias para o desenvolvimento de toda a sociedade, em que no final, todos acabariam ganhando. Nesse sentido, é importante lembrar que apesar de possuir a oitava maior economia – com PIB superior ao da Rússia, Austrália, Espanha e Canadá –, o Brasil é o nono país mais desigual e o segundo que mais concentra riqueza no mundo. Enquanto na Dinamarca uma família do grupo mais pobre precisa de apenas duas gerações para atingir uma renda média, no Brasil são necessárias nove gerações. 25% da população brasileira (55 milhões de habitantes) vive na pobreza, o que já é inaceitável. Mas se considerarmos apenas a faixa etária dos 6 a 19 anos, a situação fica dramática: quase 40% das crianças e jovens do nosso país são pobres. A educação superior é fundamental para mudar essa realidade pois possui grande potencial de gerar mobilidade social. Obter um diploma de graduação além de propiciar maiores ganhos privados também gera externalidades positivas em que toda a sociedade obtém vantagens de diversas naturezas como instituições econômicas e políticas inclusivas, que são chaves para o desenvolvimento dos países. Entretanto, para ser justa e contribuir efetivamente, a educação superior precisa gerar oportunidades iguais para todos em termos de acesso e aprendizagem.
"Obter um diploma de graduação além de propiciar maiores ganhos privados também gera externalidades positivas em que toda a sociedade obtém vantagens de diversas naturezas como instituições econômicas e políticas inclusivas, que são chaves para o desenvolvimento dos países. Entretanto, para ser justa e contribuir efetivamente, a educação superior precisa gerar oportunidades iguais para todos em termos de acesso e aprendizagem"
Quais os grandes desafios que ainda temos a superar?
JB- Nas últimas duas décadas, a parcela de jovens com idade entre 18 e 24 anos matriculados na educação superior aumentou de 8% para aproximadamente 20%. Todavia, na comparação internacional, o Brasil fica atrás de muitos países nesse indicador, inclusive na América do Sul. Em 2002, nenhum estudante de graduação fazia parte dos 20% mais pobres da população e somente 4% integravam o grupo dos 40% mais pobres. Em 2015, aproximadamente 15% dos estudantes da educação superior estavam no grupo dos 40% mais pobres. O mais adequado seria que essas porcentagens fossem equilibradas. Portanto, apesar da melhora, ainda precisamos avançar mais ainda. Por exemplo, no ano de 2014, há pouco mais de meia década, apenas 5% dos filhos de pais sem instrução brasileiros conseguiam concluir uma graduação. Já, entre os filhos de pais com educação superior, 70% alcançavam um diploma equivalente. Assim, para consolidarmos um sistema de educação superior que propicie oportunidades de acesso, de aprendizagem e de desenvolvimento iguais para todos os jovens, independente de origem social, antes da questão da qualidade, ainda precisamos melhorar em termos de expansão do acesso com equidade.
Existem perspectivas para implementarmos processo para minimizar essa desigualdade?
JB- Nos últimos 30 anos, além da expansão da oferta, programas de democratização do acesso como reserva de vagas nas instituições estatais federais (Cotas) e de financiamentos não reembolsáveis (ex: Prouni) e reembolsáveis (ex: Fies) nas instituições privadas, ampliaram as matrículas de grupos de menor nível socioeconômico. Porém, enquanto as taxas de atendimento não foram iguais para todos os grupos sociais (em 2017, enquanto 48% dos jovens mais ricos frequentavam a educação superior, apenas 7% dentre os mais pobres estavam numa graduação) e tivermos um conjunto de instituições hierarquizadas, sem equilibrio em termos de qualidade e status acadêmico entre diferentes universidades, faculdades e cursos, gerando níveis significativamente distintos de oportunidades e de ganhos entre os detentores dos diplomas, o sistema será injusto. Processos de expansão da educação superior que apenas criam vagas sem cuidar da qualidade e dos valores acadêmicos das novas instituições consubstanciam sistemas muito desiguais, que reproduzem privilégios para estudantes de maior nível socioeconômico. Infelizmente, nos anos mais recentes a expansão da educação superior brasileira está se baseando principalmente em cursos da modalidade a distância em instituições privadas com fins de lucro que em muitos casos apresentam sérios problemas de falta de qualidade. Portanto, as perspectivas não são boas, pois os avanços na redução da desigualdade do sistema de educação superior brasileiro alcançados com as políticas de ações afirmativas (ex: cotas e Prouni) têm subsumido diante da expansão sem controle de qualidade, acessada principalmente por estudantes de menor nível socioeconômico.
O estudo, desenvolvido pelo professor, foi escolhido pelo Instituto de Pesquisa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social para integrar a criação uma proposta sobre o papel das universidades no esforço para minimizar a desigualdade social. Na sua avaliação, qual a contribuição da sua pesquisa nessa proposta?
JB- Mesmo num contexto de expansão, é muito difícil justificar – moral e até instrumentalmente – a estruturação de um sistema de educação superior em que o acesso de estudantes de famílias ricas é mais frequente em instituições de elite, muitas gratuitas, com qualidade reconhecida e com diplomas prestigiados enquanto o ingresso de estudantes de menor nível socioeconômico e cultural ocorre, preponderantemente, em instituições sem status acadêmico, que cobram mensalidades, qualidade questionável e que emitem diplomas com pouco valor no mercado de trabalho. O estudo que desenvolvi em parceria com o professor Tristan McCowan ajuda a demonstrar que em países em desenvolvimento como o Brasil, mesmo com a expansão da educação superior, o sistema pode funcionar como se fossem dois elevadores sociais, um que vai para os andares mais altos e para a ‘cobertura de luxo’, utilizado principalmente pelos estudantes que possuem maior capital cultural, e outro que leva apenas aos primeiros andares, muito frequentado por estudantes com origem social e condição econômica inferior. O trabalho publicado busca apontar caminhos para a educação superior brasileira contribuir mais com a mobilidade social. Atualmente o nosso sistema articula uma “quase democratização”, refletindo as desigualdades da sociedade brasileira no interior da própria educação superior: diferenças de nível de desenvolvimento e de oportunidades futuras em função das origens sociais que produzem e reproduzem injustiças inaceitáveis num dos países mais desiguais do mundo.